domingo, 27 de maio de 2012

Indisciplinaridade (Anne Crystie)


Crédito da Imagem: Desconhecido.


            Fazia horas que estava angustiada por conta das palavras que não fluíam, dias que tentava conscientemente afetar-me com algo, algum assunto polêmico, um noticiário da TV... Até que minha mãe, gestora de uma instituição pública municipal de ensino, vulgo professora, que senta em casa todas as noites com os dedos sujos de caneta bic azul e as unhas guardando massinhas coloridas de modelar, com verbos imperativos, ajudou-me pedindo que escrevesse algo acerca da imprescindibilidade da disciplina na educação. Pronto! Mais afligida não poderia ter ficado.
            Logo eu que aspirava por cantar as singularidades, defender que o homem é da desordem ou mesmo que é necessário, todo o tempo, construirmos e derrubarmos aquilo que é lei, redigindo, em trinta linhas, com introdução, desenvolvimento e conclusão, poeminhas sobre a habilidade de não levantar a bunda da carteira nas aulas de matemática?! Em que parágrafo esconderia que gosto mesmo é de pôr as cadeiras em círculos, que confio no jaleco molhado de lágrimas pelas escadarias da emergência, que acho divertido fazer bolinhas de papel e ver meu irmão contar as laranjas nos dedos ou que tomo uma tigela de açaí no lugar da aspirina?
            Queira a senhora minha mãe me desculpar, mas as piadas de Morin (2001 apud FALCÓN; ERDMANN; MEIRELLES, 2006) sobre o pensamento complexo são bem mais divertidas que as palmatórias e sabatinas que doutrinam os futuros médicos a desfilar o modelo biomédico de sintoma que não é sujeito. As conversas fiadas de Freire (SANTANA, 2010) e sua educação libertadora, ó céus, nem de longe se assemelham às aulinhas de inglês preparadas em slides! É que essa coisa de disciplina, que enche os olhos das educadoras sonhadoras, por vezes deforma grandes gênios e emoldura pequenas lâmpadas.
            Oriunda do latim, disciplina significa ensino, instrução e educação; relação de submissão de quem é ensinado para com aquele que ensina; obediência à autoridade; procedimento correto. É uma perspectiva de saúde que não elabora as cenas psicossociais, um processo de ensino-aprendizagem pautado na teoria da tábula rasa, uma metodologia científica que repudia a intuição. Dos movimentos mais primitivos que rejeitam a mudança ou outras formas de ler o mundo. Cada um no seu quadrado, prezando a coesão dos fatores e dialetizando as partes. Antônimo de criatividade ou, por que não dizer, do “aqui e agora”.
            Corriqueiramente somos instruídos a enxergar a realidade entre parênteses colorida de Maturana como se ela fosse essencialmente alvinegra. Quer em casa, se não podemos colocar o dedo no nariz, na casa do vizinho, quando não é possível abrir a geladeira, na escola, aonde quem vai chegando vai ficando atrás (menino educado é assim que faz!), ou no hospital, com aquele quadro arrepiante de uma enfermeira nada erótica pedindo silêncio, temos sido disciplinados a pensar que pensar é só isso. Que aprender é não exceder limites ou que apesar do conhecimento ser infinito a ciência é ética e restringida.
            O que a psicologia, filosofia, hidrografia, sábados à tarde de catecismo têm a ver com isso? Queremos formatar as coisas e, por conseguinte, precisamos homogeneizar as pessoas. O resultado? Acreditamos que educação se faz com dois gizes e um apagador e que saúde é sinônimo de doença. Às vezes não enxergamos um palmo à frente da testa, somos responsabilizados pela defesa das minorias e nem mesmo consentimos a diversidade da diversidade. E cada dia que passa estou mais próxima da minha igreja, quer psicanalítica, fenomenológica, cognitivista... Estou mais longe de existir!
            É protelado, mas quero falar das equipes multiprofissionais que o Sistema Único de Saúde tanto protege e que passo cinco ou seis anos para receber um diploma e desaprender o que são. Quero gritar os índices de bullying nos pátios ginasiais aos docentes que assim fazem mesmo sem saber o que esperam. Escrever cartas e mais cartas para as mães, que dizem de instinto, sobre “como amamentar seus bebês”. Mais na moda, envio e-mails e curto as preocupações com a humanização. Ou seja, não quero nada, a não ser indignar-me com as senhoras minha mãe que hoje pelejam para que eu acredite que obediência à autoridade, àquilo que está dado, é solução para o analfabetismo funcional e/ou para a crise mundial de saúde.
            Do lado de cá, iço a bandeira pela interdisciplinaridade das práticas, em saúde e em educação, tiro o chapéu para a transdisciplinaridade dos saberes. Quero ter as coisas cada vez mais juntas, as preocupações mais holísticas, as formações mais preocupadas e, quem sabe, nem ter as coisas... Duas lógicas, dois princípios, complementares e antagônicos, pois o conhecimento, além de irresistível, não está nos gabaritos do Exame Nacional do Ensino Médio ou nas evoluções dos prontos-socorros superlotados. Ele é do acontecer, do “encontramento”, da (in)formação. É fluido. Conhecer e ser alguém quando crescer estão na indisciplinaridade!
            Indisciplinaridade ou “sem modos” ou “Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade” é a ausência de fronteiras, um mar de possibilidades, uma esfera que circunscreve qualquer espaço de mundo, seja ele solitário ou compartilhado. É uma tendência que ocupa todas as coisas porque não tem lugar para nada. Forra das regras, dos prazos, das gramáticas, dos alcorões. Indisciplinar é ensinar a rejeitar os padrões de normalidade, as hierarquizações, os livros de receita dos procedimentos politicamente corretos, e não aprender. Não é o caos ou o fim dos tempos: é a abertura para o novo, a disposição para transformação e a sensibilidade para (re)inventar as técnicas amanhã e sempre, tendo ciência de que cada realidade requer uma nova história sem velhos personagens.
            Pensar a indisciplina e as interfaces entre saúde e educação, então, é um exercício de esforço, pois que balança as correntes que nos predem; sacode os catedráticos livros didáticos que constituem os saberes e sabedores médicos. É ponderar a probabilidade de desejar um tempo no espaço ou um espaço no tempo aonde as teorias venham das práticas e as práticas das teorias. Um tanto construtivista, como diria Piaget, é o professor que não sabe mais que o aluno e o paciente que não sabe menos que o médico, mas o ser humano que forma a figura-fundo e deforma os pré-conceitos em busca de sua valorização.
            Cultuemos a disciplina de sermos indisciplinados! A postura de um profissional de “saúdeducação” exige que compreendamos o valor de não eleger uma verdade universal, a fim de que consigamos enxergar as singularidades ao nosso redor com nossa generalização de graduação. Porque se o professor, o médico, o aluno, o paciente ou o sistema: nunca saberemos em quem pôr a culpa, apesar de pôr. Jamais desenvolveremos um trabalho que a comunidade demanda, caso ao invés da arte decoremos a fôrma. Aquilo que é humano se humaniza o tempo inteiro: na leveza dos segundos, na intensidade da busca, na indisciplinaridade da disciplina.
           
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FALCÓN, G. S.; ERDMANN, A. L.; MEIRELLES, B. H. S. A complexidade na educação dos profissionais para o cuidado em saúde. Revista Texto e Contexto Enfermagem, v. 15, n. 2, p. 343-351, abr./jun., 2006.
SANTANA, A. L. Método de Educação Libertadora. Disponível em: http://www.infoescola.com/pedagogia/metodo-de-educacao-libertadora/. Acesso em: 06 dez. 2011.




ANNE CRYSTIE DA SILVA MIRANDA
Trabalho apresentado à disciplina Interfaces Saúde e Educação;
docentes Marcelo Ribeiro e Virgínia Passos.
Universidade Federal do Vale do São Francisco - UNIVASF
Graduação em Psicologia/5º período em 2011.2.

A mercantilização do conhecimento (Anne Crystie)

Crédito da Imagem: Anne Crystie.
"Aos poucos, temos nos tornado insensíveis a uma tendência não essencial a todas as coisas de subordinar tudo ao comércio."


            Bem antes que o sábio Sócrates, na antiga Atenas de quase 400 anos antes de Cristo, proferisse o bordão “só sei que nada sei”, creio eu que saber ou não saber alguma coisa já era motivo de discussão. Questionar se é realmente o conhecimento irresistível parece perpassar todas as épocas e credos, desde algumas onde este era o motivo da hierarquia dos tementes em Deus até outras onde há dúvidas se quem é mais é quem tem mais ou quem sabe mais.

            Entretanto, o que tem pra hoje parece mais simples que desenovelar se é melhor saber ou não saber. Digo, o que me traz a essas palavras é a realidade atual do sistema superior de ensino: os anseios e objetivos que levam os jovens, os adultos e/ou os idosos a adentrarem ao mundo da Universidade – ou mesmo a se deixarem ser empurrados a ele. O que querem os pais com “meu filho já vai pra faculdade” e os meninos de cabeças peladas com “passei no vestibular”?

            Ao longo da história, desvendar no ambiente da escola os “mistérios da vida” (se assim me permitem resumir todas as nossas incertezas e verdades absolutas) foi acompanhado de inúmeras e mutáveis conotações. Num dos princípios gregos, por exemplo, Platão e Aristóteles sentavam seus discípulos em suas academias a fim de amar o conhecimento, ou seja, filosofar. Já um pouco mais próximo de agora, no início do século XIX, com a vinda da família real ao Brasil, nasce o interesse de criar escolas médicas nas praças tupiniquins. Diferente dos filósofos, esses portugueses-índios, ao que parece, mais queriam honra, sabiás e vida longa a qualquer demonstração pública de afeto...

Tarjar as testas com o símbolo “calouro” por muitas horas e anos e mãos significou (e significa), sem dúvidas, realizar um sonho. Todavia, o crescimento desenfreado das privatizações do ensino superior junto ao alargamento territorial dos campi públicos, bem como a moda bancária de que feliz é quem é rico e rico é quem tem diploma, têm modificado um tanto essa equação. Entrar pra faculdade nem sempre quer dizer querer ser cientista ou artista, nem mesmo produzir conhecimentos e aprimorar técnicas, mas outra coisa...

É cada vez mais numeroso o time daqueles que estão lá, perdendo quatro, cinco ou seis anos, para, enfim, “ganhar dinheiro”. Imprimir diplomas no Brasil (digo aqui porque não tenho reflexão para tratar também das circunvizinhanças), cada vez mais, tem sido determinante de uma suposta/ilusória riqueza e não de uma dada/real sabedoria. Os pais não acreditam que os filhos podem ser bem-sucedidos fazendo bolos ou consertando sapatos, como antigamente; os filhos não se convencem de que ter uma casa com piscina é mais fácil a partir daquilo que se faz melhor e, às vezes; até os governos não sabem se o que vale mais é saber ou ter.

Aos poucos, temos nos tornado insensíveis a uma tendência não essencial a todas as coisas de subordinar tudo ao comércio. Em rápidos traços: estamos vivendo a mercantilização [até] do conhecimento! As crianças não são inqueridas mais sobre o que querem ser quando crescer. Ao invés disso, nas ruas gritam os adultos imaturos o que querem ter quando forem adultos e ainda imaturos. São as engenharias cada vez mais cheias pela copa e pelas olimpíadas e a medicina sem cadeiras, sem escutas, sem humanização, sem boas perspectivas...

Daqui da minha sala de aula, é sim o conhecimento irresistível. As janelas refletem todo o tempo aquilo que sonho e os livros me levam a lugares que salário nenhum jamais comprará. É que penso como Da Vinci: para mim, “todo o nosso conhecimento se inicia com sentimentos”. E se é assim que ele começa, não vejo motivos para que termine ou prossiga de outro modo. É preciso amar aprender, gostar do que faz, apaixonar-se de novo e outra vez pelo desconhecido a ser conhecido. Há coisas que não estão à venda e, por isso, ninguém jamais terá felicidade se antes não for feliz.
Abril de 2012

Viver de reencontros (Anne Crystie)

À três amores de minha vida.
Crédito da Imagem: Anne Crystie.
Estou quase convencida de que tudo na vida passa, tudo é despedida. Pois é, quase. Assisto insistentemente, todos os dias, com hora marcada, que até o rei Sol tem que ir embora. São as águas de março, os aniversários mal comidos, o meu tempo de criança. São as plataformas sem formas que reinventam a dor do ter que ir incessantemente. Gosto do dialógico, da dança das plantas, de conhecer lugares inóspitos. Mas o que amo mesmo é reconhecer pessoas. É saber que aquele cara era da minha escola ou que a loira ali no banco demorou tão pouco que nem o nome eu captei. São os abraços de eternas boas-vindas. E que braços! Há mãos, há pernas. Hão amigos! De vez em quando é alguém da família, um primo distante de quem nunca se sabe, um mendigo aprendiz de emergente procurando o que comer. Contudo o que em demasia me enche são as flores que ganho; os guardanapos rabiscados de batom, as bananas e ovos fritos, os cheiros que veem e os desastres que encantam. O amor é fruto de algo que desaparece – e que, por consequência, aparece num domingo qualquer. Ele é um filme daqueles em fita, gostoso de rebobinar. Não é preciso gravar as mesmas cenas. É impreciso! Na maior parte das chances até, é indesejável ou irracional (lê-se: burrice). Viver daquilo que nos significa, rever aquilo que nos constitui. Reencontrar os gostos, cognoscer. Alguns podem titubear, outros envelhecer... Os perdidos serão sempre os primeiros! Mas os amigos mesmo, desses que falo, viverão por todo o tempo a beleza e a magia da juventude. Ainda que na corda bamba um dia, amigo de verdade todo o resto de tempo que sobrar.

sábado, 26 de maio de 2012

Os dez mandamentos


Crédito da Imagem: Andrew David.
  1. Não tenhas certeza absoluta de nada.
  2. Não consideres que valha a pena proceder escondendo evidências, pois as evidências inevitavelmente virão à luz.
  3. Nunca tentes desencorajar o pensamento, pois com certeza tu terás sucesso.
  4. Quando encontrares oposição, mesmo que seja de teu cônjuge ou de tuas crianças, esforça-te para superá-la pelo argumento, e não pela autoridade, pois uma vitória dependente da autoridade é irreal e ilusória.
  5. Não tenhas respeito pela autoridade dos outros, pois há sempre autoridades contrárias a serem achadas.
  6. Não uses o poder para suprimir opiniões que consideres perniciosas, pois as opiniões irão suprimir-te.
  7. Não tenhas medo de possuir opiniões excêntricas, pois todas as opiniões hoje aceitas foram um dia consideradas excêntricas.
  8. Encontres mais prazer em desacordo inteligente do que em concordância passiva, pois, se valorizas a inteligência como deverias, o primeiro será um acordo mais profundo que a segunda.
  9. Sê escrupulosamente verdadeiro, mesmo que a verdade seja inconveniente, pois será mais inconveniente se tentares escondê-la.
  10. Não tenhas inveja daqueles que vivem num paraíso dos tolos, pois apenas um tolo o consideraria um paraíso.

Bertrand Russell,
em sua autobiografia.