domingo, 3 de fevereiro de 2013

Cuidado e prisão: uma antítese camuflada (Escrito por Anne Crystie)


Crédito da Imagem: Anne Crystie.
"Quanto do 'cuidado' aos loucos, nos manicômios, às feiras, nos conventos, e aos carcerários, nas penitenciárias, queríamos para nós?"


            O ato de cuidar é legitimado, corriqueiramente, nas mais variadas esferas das relações humanas. Apesar de ser resumido, frequentemente, a lição de casa ou a seio materno, diversos ambientes podem nos levar a essa reflexão. No âmbito político-estatal, por exemplo, tentamos decifrar a arte do cuidado na saúde, na educação, na assistência social, etc. e muitas vezes somos felizes em nossas práticas. Em contrapartida, há uma antítese certamente possível meio a esse dilema.

            Às vezes tentando acertar e outras brincando de errar mesmo, a atitude de cuidar do próximo, em alguns contextos, apesar de camuflada, está totalmente atrelada ao conceito de prisão, de assumir a responsabilidade pelo outro, de cercear a liberdade. Nesse sentido, bem trabalham grandes enciclopédias “a la Foucault”, quando revelam e questionam a realidade dos manicômios, conventos e prisões. Contudo, o que tenho por essas palavras dispensa longas datas para ser compreendido.

            A relação pai e filho é, simples e curiosamente, uma boa representação de que há uma disparidade possível entre cuidado e prisão que permeia nosso dia a dia, nossas posturas, de forma oculta. Quero dizer que, por vezes, nem nos damos conta, mas acreditamos que prender é sinônimo de cuidar, e vice-versa, e fazemos disto plano de fundo das nossas relações interpessoais. Irei me surpreender caso alguém afirme desconhecer aquela boa fofoca: “ah, o filho de Fulana só vive preso, mas é por excesso de zelo”...

            Por mais que o verbo zelar denote “cuidar de”, preciso discordar da possibilidade da Fulana está cuidado do seu filho quando o prende e comprime seus desejos e direitos mais pessoais. Acredito cada vez mais que cuidado e prisão, definitivamente, não andam de mãos dadas. Perdoe-me se as próximas frases o desafiarão, mas: desconfio imensamente do marido que acompanha a esposa em todas, e indistintamente todas, as ocasiões por querer cuidar; não me convenço da mãe que nunca permite a filha chegar mais tarde porque cuida dela com carinho; é-me de uma estranheza sem fim o professor que está cuidando das crianças quando não permite que elas expressem suas opiniões e gostos.

            O cuidado da forma que subjetivamente apreendo é aquele que não confunde zelar com velar. Alguém que é velado é vigiado todo o tempo, é reprimido de algum modo, e, por assim dizer, impossibilitado de representar para fora aquilo que atua dentro. Como posso eu, então, estar cuidado do outro se não permito que este outro sinta que é por fora aquilo que realmente quer ser por dentro? Até onde um “cuidar” que é prisão é sinônimo de carinho, se é uma atitude desprovida de respeito à alteridade?

            É um grande desafio amar sem querer possuir, de mesma forma que precisamos nos desafiar a cuidar sem precisar prender. Ninguém se sente verdadeiramente zelado se não tem seus espaços individuais protegidos. Quer seja numa relação a dois, entre pares ou em grandes grupos, todos nós precisamos respirar livremente para que nos sintamos vivos e experimentemos o cuidado em sua essência. É de nossa natureza, da natureza humana, ter a pressa de responder por nós próprios em alguma medida e, deste modo, também é humano não se sentir cuidado quando se sente preso.

            Sei que nas relações mais íntimas, sem que nos questionemos, muitas vezes, queremos dar o passo ou cair pelo outro, como prova de afeto, de cuidado. Sei porque devo ter agido assim em quaisquer ocasiões. Entretanto, a lógica do cuidado requer que compreendamos que se for preciso a batida, é preciso que não sejamos amortecedor. O outro que ansiamos por zelar também é o outro que cobiça por sentir-se livre. E então: será mesmo que não cuidaremos mais se soubermos permitir que um filho, um amigo, um paciente, um aluno veja o mundo lá fora com seus próprios olhos, sabendo que estaremos sempre por aqui, caso ele próprio produza a necessidade?

            Essa antítese entre prisão e cuidado que, cotidianamente e há muito tempo, camuflamos é uma verdade que precisamos desvelar um dia. Quanto do “cuidado” aos loucos, nos manicômios, às freiras, nos conventos, e aos carcerários, nas penitenciárias, queríamos para nós? Se não somos livres para nos desenvolvermos em potencial e expressarmos os nossos desejos mais singulares, é possível que nos sintamos cuidado? Pense nisso e tome cuidado!

Janeiro de 2013