quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Por uma medicina de havaianas (Anne Crystie)


Crédito da Imagem: Desconhecido.
Antes que eu brinque de contista, é preciso salientar que minha petulância não abriga o caráter generalista presente nas críticas inconsequentes, pois que – com o perdão pela expressão – até no inferno há imaculados anônimos ou fantasiados de Tiazinha. Nunca se sabe! Ou melhor, pelas micropartículas de ouro que os escravos levavam a viajar nos pixains: a esperança é sempre a última que morre.
Sem mais delongas, era uma vez precisar qualquer dia ir ao médico. Duas simpatias e eu estava pronta para retirar o cartão traiçoeiro do plano de saúde do lugar mais visível em minha carteira. Quase um trono; daqueles de reis aristocratas em noite de sacrifício. Sim, porque desde os 13 ensinaram-me na TV que neste país, onde se plantando tudo dá, nesta terra de palmeiras e sabiás, mais sofrida que a fila do SUS, apenas seu avô sentado, de cobertor e guarda-sol, no hall do INSS.
Enfim: meu passaporte azul e branco de cruzinha vermelha. Mas, como no plano da realidade a privatização dos direitos universais não tem significado mordomia, era outra vez meu irmão passando próximo a uns raios X (ou uns raios X passando próximo ao meu irmão) e meu relógio trabalhava direitinho. Menos de meia badalada e 70 mil pacientes foram pra o pau. Idoso e idoso (porque não havia distinção de gênero), crianças (as de fora, de 3 anos e 8 meses, e as de dentro, que, como os idosos, ainda de sexo indefinido) e o marido que saiu mais cedo do serviço para acompanhar a esposa na consulta, mas, chegando ao castelo branco 5 minutos depois dela, perde esse privilégio.
E lá vamos nós! (Eu sou a psicografia em carne e osso de Madre Teresa, não tenha dúvida.) (...) Eram 60 ou 90 vezes (tanto faz) e parecia estar eu, muito felizmente, no 4º EVSUS que, a propósito, você não sabe o que é, suspeita que tenha alguma relação com caridade pública em saúde e, por excelência, é seu tíquete do supermercado que o subsidia. Sabe quantos médicos em posição de sentido nos postinhos (bem pequenininhos) da alegria do corpo? Nenhum. Era natal de mais para isso.
Vamos a la pergunta de 100 mil reais: E quantos inscritos nos concursos municipais ou estaduais para 20h? Bingo! 0, de rombo. Ah, vá! Doutor que é doutor (sem doutorado ou pretensões acadêmicas, mas doutor) não se presta ao absurdo da estabilidade (vulgo mixaria). Pois que na minha clínica a consulta vale o prêmio de 1 milhão e a senhora Mariana de Souza, viúva, dondoca, 2º grau completo, mãe de filho único, 5 cirurgias, uma lipoaspiração, AB+ (...), só usa bolsa da Victor Hugo e essência parisiense.
Então, meninos, isso quer dizer que é possível um endocrinologista, ista e ista, carimbar 80 receitas em 4h, o que é equivalente a 3 minutos para cada candidato ao BOPE, sem cadeiras ou bom dias. Você, como profissional exemplar, não vai levantar, não deve desviar o olhar - para não perder tempo -, não sentirá a fisiologia do seu sistema urinário em ação, não saberá o que significa o desejo primitivo da fome e, por fim (e mais importante), é proibido respirar. Copiou, farinha? Belo ranking! Receba seu diploma de concluinte destaque.
São por essas e outras tantas que quando o conto começa, há sempre um era uma vez meu desejo (e necessidade) de ser permitida a conduzir naves espaciais... 195, senhor! Uma coleção de sudoku, alguns quebra-cabeças de 500 peças, consiga sair do labirinto e você é o mais novo dono da hilux do Vale da Sorte desta semana. Preencha esta ficha (com algumas perguntas pessoais que ninguém quer saber) e aguarde o mestre da galáxia chegar. Tic-tac. Tic-tac. Ele vai se atrasar mais 2 horas. Não, não, ele chegará em 9 anos e eu, por vergonha alheia, peço para avisar que o café da manhã de hoje começou mais tarde.
Aos trancos e barrancos (como diz a dona Paty), todos se despiram mutuamente e compuseram aquela eterna fila indiana, na esperança de que depois do abismo, já sem identidades, encontrassem um jovem ou velho rapaz, inteligente, educado, bom partido, que não filou as aulas de acupuntura no tempo de faculdade e nem jogou dominó durante a discussão acerca das políticas públicas e a integralidade, contrário aos “erros para compensar erros” propostos pelo ato médico, que lhes servisse um café e desejasse-lhes cautela ao volante e paciência com os apitos dos guardas de trânsito.
Surpresa! Cerram-se as cortinas (ao menos isso!), dispara-se a ampulheta e ninguém estava lá para ouvir, compreender ou amar alguém. Não há bonzinhos. Você tem todo o direito de permanecer calado. Não se sabe ainda se vai doer. Talvez sim. Mas o tempo não se importa com isso. Ao contrário, ele precisa agradar aos outros que estão esperando pelo pão. Portanto, com o maior recorde em prova de resistência do Big Brother dos últimos tempos, em 1 minuto e 46 segundos, deu tudo certo. Boa sorte! Eu estou aprovada para tocar as marchas e pisar fundo o acelerador todas as vezes que sua mãe, de jaleco e CRM, passar de salto alto na faixa de pedestres.

Camisa Verde e Branco (Anne Crystie)

Crédito da Imagem: Anne Crystie.
"Pensar um mundo sem câmeras é conceber que não mais assistiríamos aos big brothers globais ou auscultaríamos aos horários políticos no rádio."


Por este mês poderia eu ocupar seu e meu tempos cantando as coisas do carnaval, dos prazeres desmedidos (da carne ou do vinho), ou mesmo lembrar-nos de alguma forma que o fevereiro mais próximo do apocalipse maia está por findar-se. Mas não são esses que têm incitado meu paladar. Por mais inoportuno que pareça o título, quero trazer a dor e a delícia de cada um saber o que se é; pensar em como seria um novo milênio onde não vemos uns aos outros pelas janelas da alma.

Estamos cegos todos, quem assim por acaso do destino nasceu ou tornou-se e os que se viam como videntes. É duma cegueira branca, branca como o céu coberto de algodão doce de coco. Um não enxergar diferente até para aqueles que já acreditavam que não viam. Cegos dos olhos da cara. Olhos que tudo observavam, desde o tempo passar sem rota até os significantes e significados de tudo aquilo que existe e que foi feito por eles próprios existir.

Com uma das ideias que mais usamos é que pergunto: como seria comportar-se sem ninguém a olhar? Quem primeiro levaria o dedo ao nariz ou limparia a boca na toalha da mesa? E quantos não se perverteriam a correr pelado pelas praças? Talvez esconde-esconde, ao invés de cabra cega ou caiu no poço, seria o passatempo favorito, pois se escondem os dedos e os anéis, os braços e as bolsas, as bundas e as carteiras. Por tempo talvez determinado, não sei se Deus, mas, alguém nos resguardaria das coisas, dos coisos que são vizinhos e até dos que somos nós mesmos. E depois, será que existiríamos mais?

Pensar um mundo sem câmeras é conceber que não mais assistiríamos aos big brothers globais ou auscultaríamos aos horários políticos no rádio. Os oftalmologistas (ou oculistas, se preferir) de nada nos serviriam agora e aí, talvez pela primeira vez depois do Big Bang, os massagistas e instrumentistas desbancariam os doutores do mais alto patamar que nós próprios temos conseguido construir. Trocar-se-iam, sem dó, nem piedade, raybans de oitocentos reais pelo almoço popular subsidiado pelo governo, que acrescido de cinquenta centavos ainda acompanha sobremesa. E por assim dizer, quanto não valeriam as águas que poluímos ou as árvores que cortamos?

Não enxergar é a morte da ciência, pois se vão os microscópios que são lentes e precisam de olhos sãos. É tirar o cavalinho da chuva se pensar que alguém no universo vai olhar por nós, pois até os santos, que são santos, tornam-se cegos se não podemos avistá-los. E se assim é, sem esperanças e semáforos abertos (pois o único verde que não enxergaríamos, mas inspiraríamos seria o dos bolores nos pães de ontem a céu aberto), desprovidos de orações e terços alternativos, que sentido nos levaria a acreditar que o amanhã está mesmo pela frente?

Parece algodão doce, mas nem é feita de açúcar a cegueira que neste sonhoque lhe embarconos corrói.É um mar branco salgado como o medo! Medo de estar cego, porque ao menos uma vez nos últimos três minutos nós desejamos não viver assim. Medo de abrir os olhos e ainda de tal modo não enxergar... De nos desconhecer ou não conhecer-nos, de morrer e não desencobrir as verdades que por hora permanecem cegas, coitadas. “Medo do medo que dá”, como roga Sérgio Pessoa em seus devaneios.

Eu vejo! Dou por fim nossa alucinação e devolvo-nos o privilégio de verdadeiramente acreditar que não estamos cegos. Não estamos porque não temos medo de ficar e há de sobra esperança de enxergar para sempre. Vemos, arregalamos os olhos, diante do samba da Camisa Verde e Branco, uma noite dessas em seu desfile carnavalesco na TV, pois que no verde temos a esperança de no branco fecharmos os olhos e enxergarmos“uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que nós somos” (José Saramago).
Fevereiro de 2012

Política versus Politicagem (Anne Crystie)

Crédito da Imagem: Anne Crystie.
"É tempo de refletir o resultado da aritmética que pesa os pontos positivos e negativos dos comportamentos da classe e de seu representante."


Salve 1º de janeiro! É chegado o “ano de ouro”, quando, com os nervos à flor da pele, um, dois, três ou cinco cidadãos de bem, homens do povo, voam rumo aos púlpitos governamentais. Alguns deles foram árduos operários ou sonhadores nos últimos três anos e outros aproveitaram o prazer das praias do exterior. Um possivelmente foi nomeado de surpresa, dois emprestaram o nome e o quinto quer ganhar dinheiro e ser popular. Tem ainda aqueles que estudam Marx e distinguem perfeitamente a mão direita da esquerda. Os da tradição, que acreditam no potencial da família enquanto instituição... O homem de boa oratória... Até que pra última chapa, então, há sempre um deus que abrirá os mares!

Ano de política, no qual as pessoas, como nos anos anteriores e todos os anos, fazem uso em potencial do seu direito e/ou dever de eleitor. É tempo de refletir o resultado da aritmética que pesa os pontos positivos e negativos dos comportamentos da classe e de seu representante. Diferente do último apenas por resguardar em um dos seus meses o evento da eleição, 2012 deveria ser simples assim caso, claro, vivêssemos o ideal da política ao invés da realidade da politicagem.

Nos cientistas sociais mais arcaicos somos capazes de ler que o homem em sociedade é um ser naturalmente político. É a política que organiza as aptidões de cada um a fim de que todos, dando um pouco de si, ajudem aos seus e aos outros. Nela devemos encontrar a garantia da igualdade, de que os peixes e pães chegarão à mesa dos brancos, pretos e cinzas. Das mais antigas, é a arte de proferir a palavra de um conglomerado pela boca de apenas um e a astúcia de fazer valer a todos meio ao pluralismo de necessidades e opiniões. É bonito de se ver e, infelizmente, tem sido difícil de se viver.

Luís, Barack, Getúlio, Hugo, Adolf, Evo, George, Ernesto, Fernandos... Em sua minoria do sexo feminino, muitos são os apelidos que se atreveram a ocupar a comissão de frente por uma sociedade mais democrática, aristocrática, comunista, capitalista, socialista, humanista, individualista... Igualitário ou hierarquizado, não se sabe. Pois o que importa é que somos todos do grupo ou companheiros dos opositores a ele. É que ao que parece não é a ideologia que tem alimentado os partidos e coligações e nem a justiça que tem impulsionado os do contra: estamos cada vez mais (des)protegidos pela politicagem!

Se a saúde ficou por conta do estado, direi que o prefeito não tem competência, criarei nova secretaria para empregar um candidato a vereador não eleito, assumirei sem qualificação o status de uma coordenação, aceitarei os tijolos que faltam no muro e aprenderei que tudo se resolve depois do carnaval na pizzaria. Um jogo de sistema e soldados que nos bestializa o tempo inteiro enquanto procuramos em quem pôr a culpa, quando, em verdade, somos peça do quebra-cabeça. Pois não tem importado a real denotação de “ser político”: o mais divertido é “ser politiqueiro”, beber cerveja de graça no dia do comício e torcer para que minha irmã receba sem trabalhar ao mesmo tempo em que meus filhos não têm escola de qualidade.

Se inconsciente ou não, nutrindo-nos de ignorância não percebemos que tirando proveito daquilo que é de todos (ou do outro) estamos burlando a nós mesmos. É que na brincadeira do cooperativismo das aptidões, tudo que vai, volta. E é assim que se mais vale um voto do contratado que a dedicação do concursado, preferimos ao invés de eliminar um pino, derrubar todo o tabuleiro. “Antes minha conta bancária repleta de dólares advindos da cueca ou das meias, que o agricultor, antigo sem terra, enriquecendo minha empresa de implementos agrícolas”...

Pelo rico cada vez mais rico e o pobre cada vez mais miserável! E assim caminha um país que canta a “erradicação da pobreza”: impossibilitado de fazer bom uso do poder que tem nas mãos por conta das cartas que esconde nas mangas. Longe, e um pouco mais longe, do pódio pleonástico da “política para todos” e perto, excessivamente do lado, das piscinas da politicagem, que jorram ondas de exclusão, afogando esses nossos ideais insossos de bons samaritanos. E viva 7 de outubro!
Janeiro de 2012