Crédito da imagem: Desconhecido. |
O tio Jú vai me desculpar, mas tenho dois bons
motivos para odiar Brasília. Alguém vai dizer que prova que eu sorria enquanto
alimentava os pombos e mesmo que admirava, boquiaberta, os soldados feito
estátuas por todos os lados. Não nego. Mas que meu ódio é genuíno, disto tenho
todo o direito (apesar dos desgostos patrocinados pelos três poderes).
Não mais importante que o segundo, pois, o primeiro
pretexto logo é por conta da índia que certa feita lá conheci. Uma índia de
verdade, dessas que carregam penas coloridas na cabeça. Uma índia nuinha, com o
corpo pintado do sol (um biquíni muito estreito, por sinal), de zarabatana na
mão e marca de espelhos lusitanos na alma.
Ela não era de lá. E nem fazia parte daquelas
caravanas que vinham de muito longe para saldar o presidente (até podia, mas
não fazia). A depravada vinha do meio. Sim, todos nós viemos do meio. Mas é que
esta habitava as águas que limitam o norte do leste. Nascera naquelas terras de
ninguém, por onde os branquinhos cor de leite invadiram a Vera Cruz e onde
adotaram para seus navios um porto bem seguro, se é que você me entende.
Depois de Brasília, eu odeio também a índia safada.
Muitos anos se passaram, entretanto, digo-lhe que confie de pés juntos que, com
todas as capas Veja, ainda não posso acreditar que aquela pelada vestiu-se de
luxo. Melou a cara com o próprio sangue. Mal posso recordar-me da máscara que
usou aquela puta. E do preço que se vendeu, ó céus, mais baixo que os espelhos
e as contas.
Tudo aconteceu em segundos. Eu não pude impedir (e
nem sei se queria). Os capatazes correram como lobos quando avistaram aquelas
japonesas de couro. Eles rosnavam enfurecidos. “Em terra de burguês, onde cinquenta
anos são cinco, não se apresenta negrinha que não se equilibra nas plataformas”.
Sabe o que fiz, então? Tirei meu cavalo da chuva. Aceitei calada, feito escravo
nos rejeitos de feijoada, o título de “barrada no baile”. E a indiazinha burra,
tristinha, desceu dos saltos ao subir neles.
A segunda tacada, por sua vez, traz a imagem da
senhora minha mãe. Moça boa, inocente, que se nutria de sonhos a realizar há um
tempo e nem por isso deixa de nutrir-se desses hoje, quando já realizados. Minha
imaculada mainha e seus vinte e poucos livros de estudo. Agora são diplomas aos
montes, pastas empoeiradas de papel couchê, das mais variadas cores, e mãos e
braços e pés e pernas que se apoiam e riscam todas as letras, todos os sonhos
de novo e de novo (e de ontem, às vezes).
Lá veio outra índia... Só que das falsas, dessa
vez. Das sem permissão para usar arco e flecha e que, por assim dizer, não abre
mão de todos os exércitos do mundo, rendendo glórias às hierarquias mais
sabotadas e marchando, ironicamente, todo mês de independência. Era até bonita,
de inglês e Honda Civic. Mas
desprovida de humanidade (no sentido humilde da coisa, se me permite a inserção
conceitual), provida de capitalismo leão, que tem por poema de cabeceira “Mais
vale ter do que ser”.
Ela dizia aos ventos que estava a arregalar os
olhos por minha amada mãezinha. Gritava que a surpresa era muita, como se eu
não estivesse a ouvir. E ria, desesperadamente, da minha e dos outros inteiros
que sonham e realizam tarde porque realizam no seu tempo. Ah, esta pseudo-índia
(também safada, como se fosse de família) humilhou-me por demais. E eu me subordinei. E eu me subordinava. E eu
me subordino.
Agora diga, meu tio, com toda a imparcialidade, como
se você também, outro safado, não carregasse no peito essa naturalidade pátria:
por que diabos enfiaram na cabeça dos brasilienses que as meias-calças que suas
mulheres usam no verão são mais dignas de respeito e êxito que os corpos nus,
que são e sempre foram a cara do Brasil? Há sequer modos de justificar esse
etnocentrismo de duas torres, esse brasiliocentrismo fajuto?
Eis que odeio com toda a minha alma. Aprendi a
detestar os cheiros parisienses, os plágios baratos de civilização e boa
cultura, os filhos de índio na Lacoste.
Até os bichos do MST de lá, daquele cerrado lamaceiro, me causam náusea alguns
dias. Não quero saber dos pobres, dos que dormem sob a sombra da Kubitschek.
São todos pilantras!
Já não sabe que a emergente mister fugiu até aqui
para roubar o resto das vacas, mortas de fome, no meio da caatinga? Pois se não
sabe, nem sabe de nada. A baleiona, mais baleia e bolandeira que todos nós
batidos, rechaçou, definitivamente, as origens e assumiu de vez o jeito meigo
Hobby Wood de existir (como se existissem mortos de sede nessa história!). Agora
diga, vá, não carrego lá minhas pedras e não posso pôr em bandeiras minhas
razões para detestar esse círcu(lo)?!
É muita pretensão, muita ira, muito saco nas costas.
E que há mais gente solta, por aí, vestindo essa pele, eu sei, não preciso que
você me diga. Acha que sou alguma besta? Já fui. Agora sou um poço de pecados,
de não caber mais furor. Carrego meus dois e bons ensejos para onde for,
esfrego na cara dos molequinhos burgueses e não escondo meus pés no chão de
ninguém. Não me envergonho de minha vergonha, daquela que sentia. E agora que
tenho voz, nem preciso ter explicações. O poder que guardo dispensa quaisquer
motivos, meu caro. É isso.
Ah, tenho até um terceiro motivo, mas deste não vou
me gabar. Já é tarde! Foi quando fiquei nua, como a índia verdadeira não viciada, para não
ter que falsificar minha identidade e CPF. Meu vestido era lindo, linho puro,
bem passado. E lá se via os lobos de novo, com suas tocas pesteadas de vestidos
de espelho (um mais brega que o outro). Dava não, seu Juca. Os pés que pisam
neste chão são os mesmos que permanecem nas havaianas e que hoje, graças ao
homenzinho, diriam, chegam à nossa capital gloriosa no mesmo aeroplano que você/vossa
excelência.
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O que eu te falo nunca é o que te falo e sim outra coisa. (Clarice Lispector)