Crédito da Imagem: Desconhecido. |
Fazia
horas que estava angustiada por conta das palavras que não fluíam, dias que
tentava conscientemente afetar-me com algo, algum assunto polêmico, um
noticiário da TV... Até que minha mãe, gestora de uma instituição pública
municipal de ensino, vulgo professora, que senta em casa todas as noites com os
dedos sujos de caneta bic azul e as
unhas guardando massinhas coloridas de modelar, com verbos imperativos,
ajudou-me pedindo que escrevesse algo acerca da imprescindibilidade da disciplina
na educação. Pronto! Mais afligida não poderia ter ficado.
Logo
eu que aspirava por cantar as singularidades, defender que o homem é da
desordem ou mesmo que é necessário, todo o tempo, construirmos e derrubarmos
aquilo que é lei, redigindo, em trinta linhas, com introdução, desenvolvimento
e conclusão, poeminhas sobre a habilidade de não levantar a bunda da carteira
nas aulas de matemática?! Em que parágrafo esconderia que gosto mesmo é de pôr
as cadeiras em círculos, que confio no jaleco molhado de lágrimas pelas
escadarias da emergência, que acho divertido fazer bolinhas de papel e ver meu
irmão contar as laranjas nos dedos ou que tomo uma tigela de açaí no lugar da
aspirina?
Queira
a senhora minha mãe me desculpar, mas as piadas de Morin (2001 apud FALCÓN; ERDMANN; MEIRELLES, 2006)
sobre o pensamento complexo são bem mais divertidas que as palmatórias e
sabatinas que doutrinam os futuros médicos a desfilar o modelo biomédico de sintoma
que não é sujeito. As conversas fiadas de Freire (SANTANA, 2010) e sua educação
libertadora, ó céus, nem de longe se assemelham às aulinhas de inglês preparadas
em slides! É que essa coisa de disciplina, que enche os olhos das educadoras
sonhadoras, por vezes deforma grandes gênios e emoldura pequenas lâmpadas.
Oriunda
do latim, disciplina significa ensino, instrução e
educação; relação de submissão de quem é ensinado para com aquele que ensina;
obediência à autoridade; procedimento correto. É uma perspectiva de saúde que
não elabora as cenas psicossociais, um processo de ensino-aprendizagem pautado na
teoria da tábula rasa, uma metodologia científica que repudia a intuição. Dos
movimentos mais primitivos que rejeitam a mudança ou outras formas de ler o
mundo. Cada um no seu quadrado, prezando a coesão dos fatores e dialetizando as
partes. Antônimo de criatividade ou, por que não dizer, do “aqui e agora”.
Corriqueiramente somos instruídos a enxergar a realidade
entre parênteses colorida de Maturana como se ela fosse essencialmente
alvinegra. Quer em casa, se não podemos colocar o dedo no nariz, na casa do
vizinho, quando não é possível abrir a geladeira, na escola, aonde quem vai
chegando vai ficando atrás (menino educado é assim que faz!), ou no hospital,
com aquele quadro arrepiante de uma enfermeira nada erótica pedindo silêncio, temos
sido disciplinados a pensar que pensar é só isso. Que aprender é não exceder
limites ou que apesar do conhecimento ser infinito a ciência é ética e restringida.
O que a psicologia, filosofia, hidrografia, sábados à
tarde de catecismo têm a ver com isso? Queremos formatar as coisas e, por
conseguinte, precisamos homogeneizar as pessoas. O resultado? Acreditamos que
educação se faz com dois gizes e um apagador e que saúde é sinônimo de doença. Às
vezes não enxergamos um palmo à frente da testa, somos responsabilizados pela
defesa das minorias e nem mesmo consentimos a diversidade da diversidade. E
cada dia que passa estou mais próxima da minha igreja, quer psicanalítica,
fenomenológica, cognitivista... Estou mais longe de existir!
É
protelado, mas quero falar das equipes multiprofissionais que o Sistema Único
de Saúde tanto protege e que passo cinco ou seis anos para receber um diploma e
desaprender o que são. Quero gritar os índices de bullying nos pátios ginasiais aos docentes que assim fazem mesmo
sem saber o que esperam. Escrever cartas e mais cartas para as mães, que dizem
de instinto, sobre “como amamentar seus bebês”. Mais na moda, envio e-mails e
curto as preocupações com a humanização. Ou seja, não quero nada, a não ser indignar-me
com as senhoras minha mãe que hoje pelejam para que eu acredite que obediência
à autoridade, àquilo que está dado, é solução para o analfabetismo funcional e/ou
para a crise mundial de saúde.
Do
lado de cá, iço a bandeira pela interdisciplinaridade das práticas, em saúde e
em educação, tiro o chapéu para a transdisciplinaridade dos saberes. Quero ter
as coisas cada vez mais juntas, as preocupações mais holísticas, as formações
mais preocupadas e, quem sabe, nem ter as coisas... Duas lógicas, dois
princípios, complementares e antagônicos, pois o conhecimento, além de
irresistível, não está nos gabaritos do Exame Nacional do Ensino Médio ou nas
evoluções dos prontos-socorros superlotados. Ele é do acontecer, do “encontramento”,
da (in)formação. É fluido. Conhecer e ser alguém quando crescer estão na
indisciplinaridade!
Indisciplinaridade
ou “sem modos” ou “Transtorno de Déficit de Atenção e
Hiperatividade” é a ausência de fronteiras, um mar de possibilidades, uma
esfera que circunscreve qualquer espaço de mundo, seja ele solitário ou compartilhado.
É uma tendência que ocupa todas as coisas porque não tem lugar para nada. Forra
das regras, dos prazos, das gramáticas, dos alcorões. Indisciplinar é ensinar a
rejeitar os padrões de normalidade, as hierarquizações, os livros de receita
dos procedimentos politicamente corretos, e não aprender. Não é o caos ou o fim
dos tempos: é a abertura para o novo, a disposição para transformação e a
sensibilidade para (re)inventar as técnicas amanhã e sempre, tendo ciência de
que cada realidade requer uma nova história sem velhos personagens.
Pensar a indisciplina e as interfaces entre saúde e
educação, então, é um exercício de esforço, pois que balança as correntes que
nos predem; sacode os catedráticos livros didáticos que constituem os saberes e
sabedores médicos. É ponderar a probabilidade de desejar um tempo no espaço ou
um espaço no tempo aonde as teorias venham das práticas e as práticas das
teorias. Um tanto construtivista, como diria Piaget, é o professor que não sabe
mais que o aluno e o paciente que não sabe menos que o médico, mas o ser humano
que forma a figura-fundo e deforma os pré-conceitos em busca de sua
valorização.
Cultuemos a disciplina de sermos indisciplinados! A
postura de um profissional de “saúdeducação” exige que compreendamos o valor de
não eleger uma verdade universal, a fim de que consigamos enxergar as
singularidades ao nosso redor com nossa generalização de graduação. Porque se o
professor, o médico, o aluno, o paciente ou o sistema: nunca saberemos em quem
pôr a culpa, apesar de pôr. Jamais desenvolveremos um trabalho que a comunidade
demanda, caso ao invés da arte decoremos a fôrma. Aquilo que é humano se
humaniza o tempo inteiro: na leveza dos segundos, na intensidade da busca, na
indisciplinaridade da disciplina.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
FALCÓN,
G. S.; ERDMANN, A. L.; MEIRELLES, B. H. S. A complexidade na educação dos
profissionais para o cuidado em saúde. Revista
Texto e Contexto Enfermagem, v. 15, n. 2, p. 343-351, abr./jun., 2006.
SANTANA,
A. L. Método de Educação Libertadora. Disponível em: http://www.infoescola.com/pedagogia/metodo-de-educacao-libertadora/.
Acesso em: 06 dez. 2011.
ANNE CRYSTIE DA SILVA MIRANDA
Trabalho apresentado à disciplina Interfaces Saúde e Educação;
docentes Marcelo Ribeiro e Virgínia Passos.
Universidade Federal do Vale do São Francisco - UNIVASF
Graduação em Psicologia/5º período em 2011.2.
Universidade Federal do Vale do São Francisco - UNIVASF
Graduação em Psicologia/5º período em 2011.2.
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