sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Diga não ao sadomasoquismo social! (Escrito por Anne Crystie)


Crédito da Imagem: Anne Crystie.
"Sejamos, pois, sadistas conosco e masoquistas por ninguém. E que eu morra sonhado, para que, caso o mundo acabe, as pessoas nasçam de novo e corajosas."

            É meio sem início e cheio de princípios o que escrevo hoje. Está nas ruas, nas caras pintadas e nos caras lavadas. É duma paixão que vem de dentro e que me açoita feito vagabunda todas as vezes que, depois de meus delírios solitários, vejo os rebanhos seguindo o toque do berrante, as massas esticando alegremente seus lombos para que lhes tirem uma lasca de couro. É sobre um sadismo e masoquismo sociais, dos quais tenho orgulhosamente nojo, que quero lhe falar.

            Da dinâmica de todos os grupos, existe sempre um líder, nato ou escolhido. Ele é aquele que carrega a tocha, que finca a bandeira, que organiza cartograficamente as funções. No entanto, aos que desconhecem essa possibilidade ou desacreditam dela e também aos que tem por ela esperança e que, por isso, gostam de revisitá-la, preciso dizer que há líderes e líderes. Pois é que são plurais as formas de distribuir o poder. Coexistem modos bem distintos de discursar e mais marcados ainda são os modelos que dão ou não importância a simples atitude de ouvir. Então, que tipo de líder e/ou liderado tem cabido em cada um de nós? Já parou para pensar acerca disto?

            Há discursos porretas (quilômetros deles!) em se tratando dessas coisas de democracia, cooperação, liberalismo, “voz do povo, voz de Deus” ou centralização. Mas não quero isto. Deixo as tolas descrições dos modus operandi aos que gostam dum bom grego. Até porque, nesse mundo onde Lula é Deus e FHC é o diabo, não vejo utilidade de esquerda ou direita, a não ser quando preciso quebrar a esquina. Quero pensar no poder que não cabe nos livros de sociologia, mas que está nas mãos de um povo e nas costas de outro ou no sábado nas mãos e no domingo no lombo de um mesmo povo. Falo daquele poder que vai estar resposta quando eu lhe perguntar: o que você sente?

            Costumeiramente, e destituído de quaisquer sentidos racionais, são muitos os que apreendem o poder por uma lógica maniqueísta, classificando-o, claro, sempre como o lado obscuro da história. Das duas, uma: ou os que propagam que ter poder é ser mau são inocentes e não o tem, ou o tem em demasia e, para evitar dividi-lo, manipulam todos os primeiros que passam pela frente, alienando-os de que empoderar-se é coisa de Judas. E eu, por assim dizer, cá fico admirada dessa lógica... Por que uns (incluindo-me, em alguma medida), mesmo após ciência das correntes que os prendem e de posse de oportunidade de mudança, preferem ser chicoteados a diluir os feitores?

            Há uma luta para que esse diamante, que é da ordem natural das coisas e orienta os homens e suas ações compartilhadas, seja experimentado por todos, que de baixos e altos passam a horizontalizados nessa ocasião. Todavia, das utopias dos que militam pelo direito de voz indiscriminado, nem sempre o povo fala. Por vezes, no auge do furacão, as cabeças se abaixam, as camisas se remexem e, de onde se esperava gritos, lá vai outra tira de couro legítimo. Couro de liderado, dominado, servo. Qual o motivo para tanta covardia, ora essa?! Será que, frutos de colonização que somos, estamos fadados a morrer pelas pontas, sem vez e sem ruído?

            Muitos são os intelectuais que alegam indistinção entre a escravidão e essa coisa de gestão participativa. Eles dizem na TV a cabo e nos documentários internacionais que, no fundo, o pódio será eternamente dos poucos, dos que se deixam ser crucificados sensacionalmente e beijam seus súditos no banquete. E eu, audaciosamente, me recuso a acreditar! Na verdade, me recuso a ceder, a não acreditar nas pessoas, na singularidade do poder que está na participação popular. E esse sadomasoquismo social é o eterno desafio. Até quando brigar por púlpitos universais vai ter graça frente a essa juventude de qualquer idade que sente prazer com um sofativismo falso moralista?

            É preciso que espalhemos espelhos nas praças e que manchemos de vez essa honra ensandecida. Digo dar a cara a tapas, amigo. A estrelinha do PT não significa nada. Os discursos de papagaios e tucanos menos ainda. Sonho com um tempo onde somos ousados e repartimos com unhas e dentes o poder quando o encontramos. Não corremos da raia, não deixamos espaços vazios porque sentimos prazer ao apanhar. Ao invés disso, batemos em nós mesmos. Sejamos, pois, sadistas conosco e masoquistas por ninguém. E que eu morra sonhando, para que, caso o mundo acabe, as pessoas nasçam de novo e corajosas.

Outubro de 2012