sábado, 26 de março de 2011

Lisbon Revisited (Álvaro de Campos/Fernando Pessoa)

Crédito da Imagem: Desconhecido.

Não: não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafisica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) ­
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia!

Ó céu azul ­ o mesmo da minha infância ­,
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflecte!

Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.
Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!

quinta-feira, 24 de março de 2011

Retrato de um Pierrot (Anne Crystie)

Crédito da Imagem: Desconhecido.
Sei que tenho reclamado com uma frequência irritante dessa minha, e herdada, capacidade de sentar para ver o tempo passar, como se o meu egocentrismo permitisse que a Terra - porque o sol não sei se existe - girasse sob meu comando. Entretanto, ainda que não tenham sido jogados fora todos os meus discos de Raul, hoje nem penso em ser uma metamorfose ambulante e nunca ter aquela velha opinião formada sobre tudo: contento-me em viver todos os dias deste ano como se fossem carnaval sendo.

Se foi bom te conhecer, não me lembro - dizem que há dessas amnésias de infância. No entanto, foi inenarrável pelas ruas encontrar você! Pela primeira vez, em mil e trinta e quatro dias, pude compreender a droga que paira no ar quando falam daquele baiano da cidade de luz e prazer correndo atrás do trio. E as minhas pernas tremiam!

Vou me entregando, me entregando... Jamais terei medo daquelas coisas acaso você fielmente tenha transformado minha história num conto de fadas. Dei-lhe o meu papel principal: amar, seja com neurotransmissores, significações sociais baratas ou alguma coisa mística que não sou capaz de descrever.

No seu calor não havia - mesmo - como permanecer em minha zona fria de conforto. E olha que não falo de quentura: falo de fogo, de janelas fechadas. Todas as loucuras que me fez cometer, o conjunto delas, nas minhas minuciosas lembranças sensoriais e perceptivas, me faz perceber que eu estava louca! Já admiti que sua emoção me desconserta. E foi assim desde o início - que sei e não sei quando.

As vírgulas até podem se repetir, mas será, amanhã e sempre, tudo novo de novo. Estou de poemas abertos! Voltando a ser aquela garotinha que esperava o ônibus da escola - (não mais) sozinha. Quem você sempre amou. (...) Por quem, infinitamente, derrubei e construí castelos. Derrubei, construí... Sólidos, como seus dedos das mãos em forma de "decloração".

We are the world of qualquer coisa, contanto que exista nós. É tudo!

quinta-feira, 17 de março de 2011

Bonecas aos meninos, carrinhos às meninas! (Anne Crystie)

Crédito da Imagem: Anne Crystie.
"O machismo, intrínseco a conjuntura atual, esconde uma lógica que, por vezes, não nos damos conta."


Há dessas coisas no dia-a-dia que nos inquietam a ponto de sermos intolerantes diante de ações e/ou atores. Nas últimas semanas, pois, tenho me atentado facilmente para aquilo que dentro das grandes ou pequenas lutas sociais etiquetam de “desigualdade de gênero” – vulgo machismo.

Desde muito jovens ou, por que não dizer, desde o período pré-natal, somos educados a valorar a classe de gênero que pertencemos, se homem ou mulher, seguindo preceitos que foram traçados “mil anos luz” atrás. (...) São as meninas para casar e os meninos para sustentar a casa! Rosa quando mulher, azul quando homem. E tudo parece tão estagnado que sequer percebemos, às vezes, que o mundo dá voltas...

O conceito de gênero não se refere exatamente aos homens e mulheres, mas as relações entre eles. Esse subentende uma série de processos culturais, sociais, políticos e morais, que atuam como atribuidores de valores a essas relações. Tudo arquitetonicamente prático se, frequentemente, não fosse designado à mulher uma posição subalterna.

O machismo, intrínseco a conjuntura atual, esconde uma lógica que, por vezes, não nos damos conta. Digo: as atitudes de discriminação contra a mulher e a não aceitação da igualdade de direitos entre os gêneros são passadas de geração a geração como se assim houvesse de ser feito. Somos alienados a concordar com uma política que desconsidera o fato das pessoas serem iguais entre si, por não levar em conta a classificação majoritária dessas, que é a de ser humano.

(...) E defendemos que chorar não é coisa de homem, porque a mulher é o sexo frágil; que as roupas são melhor lavadas ou as comidas mais saborosas caso passadas pelas mãos femininas, mas trocar lâmpadas e bater pregos são trabalhos de macho; as mães trocam fraldas e têm seis meses de licença maternidade, enquanto os pais dão broncas e se ausentam apenas cinco dias do trabalho.

Você já parou para pensar que, talvez, se as garotas em suas infâncias brincassem sem culpa com carrinhos evitaríamos essas anedotas de que “mulher no volante: perigo constante”? Não quero validar teorias ou afirmar hegemonia de minha opinião. Ambiciono tão-somente que reflitamos que a fronteira existente entre pessoas que se comportam como homens, ou como mulheres, é mesmo que a linha do Equador: imaginária!

Os meninos podem, sim, brincar de bonecas! Afinal, as bonecas, além de entreter, não servem para que as meninas fantasiem a reprodução, o cuidado e o conceito de família? Homens também reproduzem, cuidam e constroem família. E se sua esposa está grávida: parabéns, você está grávido! Soa estranho, mas esta palavra existe no dicionário.

É isso! Torçamos pelas mulheres no futebol sem preconceito e não questionemos a orientação sexual dos cabeleireiros por sua profissão. Alguns homens varrem muito bem a casa e há excelentes engenheiras por aí. Misturemo-nos neste caldeirão de iguais que se dizem diferentes! A ideologia feminista, ao contrário da machista, não defende que as mulheres sejam superiores, mas que tenhamos todos, homens e mulheres, direitos iguais.

O fim da desigualdade de gênero é uma das chaves para o desenvolvimento. Abramos este baú! Para isto, fica a recomendação de Charlie Chan: “Mente humana, como pára-quedas: funciona melhor aberta.”
Março de 2011

Sobre a mulher

Crédito da Imagem: Desconhecido.



"Ela desviou os olhos, soergueu um pouco a parte inferior da túnica, mas só acabou de puxá-la para cima, à altura do ventre, quando ele já se vinha debruçando e procedia do mesmo modo com a sua própria túnica, e Maria, entretanto, abrira as pernas, ou as tinha aberto durante o sonho e desta maneira as deixara ficar, fosse por inusitada indolência matinal ou pressentimento de mulher casada que conhece os seus deveres."

José Saramago,
em seu livro O Evangelho segundo Jesus Cristo.