quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Camisa Verde e Branco (Anne Crystie)

Crédito da Imagem: Anne Crystie.
"Pensar um mundo sem câmeras é conceber que não mais assistiríamos aos big brothers globais ou auscultaríamos aos horários políticos no rádio."


Por este mês poderia eu ocupar seu e meu tempos cantando as coisas do carnaval, dos prazeres desmedidos (da carne ou do vinho), ou mesmo lembrar-nos de alguma forma que o fevereiro mais próximo do apocalipse maia está por findar-se. Mas não são esses que têm incitado meu paladar. Por mais inoportuno que pareça o título, quero trazer a dor e a delícia de cada um saber o que se é; pensar em como seria um novo milênio onde não vemos uns aos outros pelas janelas da alma.

Estamos cegos todos, quem assim por acaso do destino nasceu ou tornou-se e os que se viam como videntes. É duma cegueira branca, branca como o céu coberto de algodão doce de coco. Um não enxergar diferente até para aqueles que já acreditavam que não viam. Cegos dos olhos da cara. Olhos que tudo observavam, desde o tempo passar sem rota até os significantes e significados de tudo aquilo que existe e que foi feito por eles próprios existir.

Com uma das ideias que mais usamos é que pergunto: como seria comportar-se sem ninguém a olhar? Quem primeiro levaria o dedo ao nariz ou limparia a boca na toalha da mesa? E quantos não se perverteriam a correr pelado pelas praças? Talvez esconde-esconde, ao invés de cabra cega ou caiu no poço, seria o passatempo favorito, pois se escondem os dedos e os anéis, os braços e as bolsas, as bundas e as carteiras. Por tempo talvez determinado, não sei se Deus, mas, alguém nos resguardaria das coisas, dos coisos que são vizinhos e até dos que somos nós mesmos. E depois, será que existiríamos mais?

Pensar um mundo sem câmeras é conceber que não mais assistiríamos aos big brothers globais ou auscultaríamos aos horários políticos no rádio. Os oftalmologistas (ou oculistas, se preferir) de nada nos serviriam agora e aí, talvez pela primeira vez depois do Big Bang, os massagistas e instrumentistas desbancariam os doutores do mais alto patamar que nós próprios temos conseguido construir. Trocar-se-iam, sem dó, nem piedade, raybans de oitocentos reais pelo almoço popular subsidiado pelo governo, que acrescido de cinquenta centavos ainda acompanha sobremesa. E por assim dizer, quanto não valeriam as águas que poluímos ou as árvores que cortamos?

Não enxergar é a morte da ciência, pois se vão os microscópios que são lentes e precisam de olhos sãos. É tirar o cavalinho da chuva se pensar que alguém no universo vai olhar por nós, pois até os santos, que são santos, tornam-se cegos se não podemos avistá-los. E se assim é, sem esperanças e semáforos abertos (pois o único verde que não enxergaríamos, mas inspiraríamos seria o dos bolores nos pães de ontem a céu aberto), desprovidos de orações e terços alternativos, que sentido nos levaria a acreditar que o amanhã está mesmo pela frente?

Parece algodão doce, mas nem é feita de açúcar a cegueira que neste sonhoque lhe embarconos corrói.É um mar branco salgado como o medo! Medo de estar cego, porque ao menos uma vez nos últimos três minutos nós desejamos não viver assim. Medo de abrir os olhos e ainda de tal modo não enxergar... De nos desconhecer ou não conhecer-nos, de morrer e não desencobrir as verdades que por hora permanecem cegas, coitadas. “Medo do medo que dá”, como roga Sérgio Pessoa em seus devaneios.

Eu vejo! Dou por fim nossa alucinação e devolvo-nos o privilégio de verdadeiramente acreditar que não estamos cegos. Não estamos porque não temos medo de ficar e há de sobra esperança de enxergar para sempre. Vemos, arregalamos os olhos, diante do samba da Camisa Verde e Branco, uma noite dessas em seu desfile carnavalesco na TV, pois que no verde temos a esperança de no branco fecharmos os olhos e enxergarmos“uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que nós somos” (José Saramago).
Fevereiro de 2012

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