segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

A modernidade sofre de amnésia! (Anne Crystie)

A modernidade sofre de amnésia!
Escrito por Anne Crystie.

"Já na segunda-feira, não nos damos conta que não saudamos o vizinho ao lado, se ele não estaciona o seu carro na nossa sombra."


Quase nada me incomoda tanto quanto a velocidade que leva os dias a serem riscados do calendário. Ainda há pouco, eu compartilhava com um amigo a ansiedade que sentia ao notar a proximidade do Natal. Já parou para perceber quão pouco resta para que comecemos a acordar os dias com o mistério da renovação que o findar do ano nos traz? Não?! (...) Ao menos parou?

O ritmo dos tempos modernos, caso fosse o mesmo que os músicos tanto perseguem por receio de sair dele, soaria como uma orquestra, com suas notas apressadas e sua melodia de Sapucaí em pleno carnaval. Nós nos pomos sambando o tempo todo: do café da manhã mal tomado à madrugada mal dormida. As listas de compromissos só não são mais extensas/intensas que a satisfação ao escutar o efervescer daquela cervejinha ou coca-cola no domingão.

Já na segunda-feira, não nos damos conta que não saudamos o vizinho ao lado, se ele não estaciona o seu carro na nossa sombra. Triste sombra! Que só pode participar de nossa vida alguns poucos minutos por dia... É! Porque sempre estamos de saída. (...) E se você se lembrou de estalar um abraço na sua companheira ou no seu companheiro antes de sair de casa; se você ainda não reservou um dia na agenda para pensar em casamento, mas se lembrou de, antes de voltar ao trabalho, enviar pelo celular um xaveco àquela pessoa legal, que lhe fez rir no sábado: Parabéns! Você faz parte da minoria de nossa sociedade que não sofre amnésia diante de todo e qualquer como.

Temos, com freqüência e cada vez mais precocemente, nos esquecido de olhar ao alto nas noites de lua cheia ou de beijar à testa nossas crianças, antes delas irem dormir. Esquecido de usar o fio dental depois do almoço ou de pedir a bênção aos nossos pais. Às vezes esquecemos as chaves, as datas especiais... Ou, simplesmente: esquecemos. Esquecemos de nós mesmos! De como gozamos com um cafuné fora de hora; de derrubar aquela bacia de pipocas em frente à TV; de trancar a bicicleta e experimentar as pernas caminharem sem destino. Esquecemos de ser-no-mundo! E seguimos estando e, claro, esquecendo.

Alegrar-se todos os dias, logo cedo, por meramente existir! (...) Como seria, talvez, se esquecêssemos de trocar as pilhas do relógio de parede-parado da cozinha e atrasássemos o despertador da cabeceira dois segundos, só para observar a chuva bater na janela ou os raios de sol que as frestas deixam entrar? (...) E o tempo de que tanto receio: ele é sempre o mesmo; ainda que hoje o dia pareça ter passado mais rápido. Logo: será que, ao invés do tempo, não somos nós que estamos ininterruptamente passando correndo? Passando arrastando os sonhos de ontem, os do último natal... Os sonhos de levar a família para passear ou de cometer uma loucura nova...

Haja réveillon! A cada translação completa é uma promessa de vida nova, e permanecemos os mesmos velhos de ontem... Que debruçam a cabeça pesada no travesseiro, esperando o “Amanhã Salvador da Pátria” chegar à rodoviária trazendo uma mala com disposição e outra com preocupação, para que lembremos de expressar em cada recorte de hora o amor e gratidão que sentimos pelo próximo que nos acompanha segunda, terça, quarta e quinta-feira.

Vai mesmo esperar pela próxima sexta? Tudo bem. Eu também esperarei. Esperarei que você tenha a sorte de encontrar um mundo igualmente com amnésia, que não se lembre de tirar-lhe de perto as pessoas que tanto lhe importam e as coisas que tanto satisfazem os seus desejos. Um mundo que se esqueça de fechar-lhe a porta às possibilidades e a janela aos perdões.

Enfim, já que hoje estou com a memória um pouco melhorzinha, permita-me apenas mais uma sugestão: Já declamava Thomáz Antonio Gonzaga – vulgo Dirceu – à sua amada Marília, há duzentos ou trezentos anos atrás, que “Aproveite-se o tempo, antes que (ele) faça / O estrago de roubar ao corpo as forças / E ao semblante a graça”.

Novembro de 2010

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O que eu te falo nunca é o que te falo e sim outra coisa. (Clarice Lispector)